28 outubro 2006



era uma linha azul
que perdia as mãos
numa areia
húmida e uterina

e os olhos muravam-na.

era uma linha azul.
os dedos enterravam-se
no horizonte quente,
e era bom.

era uma linha azul,
um azul voador,
viajante por ele adentro,
largando a poeira dos dedos
que para trás,
estendidos, secavam.

aquela linha era azul,
fazia sentido,
as outras, não se sabe,
nunca ninguém lá
enterrou os dedos.




Foto e Texto: Ricardo Fernandes

18 outubro 2006


 Ritual                                                            À Zezita

Para ti inventei
Este ritual.
Sem sangue, sem aras,
Nem mesmo sacrifícios
Propiciatórios.

Para ti inventei um fruto,
Um rito,
Com coração vermelho,
Que divido contigo aos bagos.

Para ti inventei um alfabeto
Sumarento, doce,
Que tem tantas letras
Quanto as que quisermos
e forma sílabas infinitamente.

Para nós inventei
Este tempo, assim parado.
Sem ninguém,
Só nós, o alfabeto,
o ritual e a romã.




Ilustração: Graça Morais in Pedro Lembrando Inês (Nuno judíce); Texto: Ricardo Fernandes.

17 outubro 2006


Estendido na praia dos teus braços,
Acordo.
Acordo com o acordeão dos teus lábios,
Áspero, firme.
Vão e vêm, os teus lábios,
Soltando uma-a-uma as sílabas metálicas...
Esse acordeão, esses lábios, esses acordes.

Acordo.
Acordo com o peito quebrado contra as marés.
E esses meus braços
Torneiam-me, descobrindo-me, cercando-me...

Os teus dedos, os teus foles,
As tuas mãos peregrinas
Dedilham, calcorreando
Geograficamente este meu peito,
Este nosso peito,
Exposto, oxidado,
Quebrado por uma onda
Que nos dividiu como uma romã.

Pouso bago-a-bago nos teus lábios
Esse fruto das intempéries.
E a minha única certeza
É o mar azulino que nos envolve
E o som da velha concertina
Que ainda ecoa,
Dessa praia que são os teus braços.



 Foto ( Madeiro de Tróia) e Texto: Ricardo Fernandes